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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Causo : Seu Ziraldo


Blog de coisastantasderenatohirtz :COISAS TANTAS DE RENATO HIRTZ, Causo : Seu Ziraldo
    Vovô Ziraldo ou tio Zira como era conhecido pelas pessoas é uma figura especial. Aos oitenta e dois anos possui um nível de vaidade que beira as raias da alucinação.Cabelo cuidadosamente cortado e penteado,barbeado com requinte e com um bom gosto para se vestir provocava até nos mais jovens uma inveja saudável. Para dar uma voltinha por aí com sua “eterna noiva” de oitenta anos não media esforços.Dona Hortência recebia uma severa reprimenda se descuidava da aparência e estilo ao se vestir,observando com rigor quando o peso dos anos fazia vacilar seu caminhar elegante.
   - Olha a corcunda, Tência ! (o nome original foi abreviado com o passar do tempo). É de bom tom mulher andar corretamente com sapatos de saltinho. Não tirava os olhos da postura de sua mulher. Sempre foi muito exigente consigo e com sua esposa ao longo dos quase 65 anos que se conheciam.Compra de perfumes,cosméticos,sessões de massagens,cabeleireiro,dentistas e visitas sistemáticas ao doutor ,ou melhor,aos doutores eram religiosamente efetuados.Nada podia atrapalhar as suas vidas ou afetar a aparência deles.
   Dona Hortência fala com orgulho da beleza que seu Ziraldo possuía na juventude e do seu ciúme que lhe corroia as entranhas quando iam aos bailes do clube da cidade natal. Os olhos verdes,o cabelo loiro liso e grosso caído na testa, seus ombros largos provocavam frenesis nas garotas quando ele adentrava ao salão e sofriam com os "olhos gordos " que botavam quebrantes ao namoro dos dois.O casamento,a lua de mel e dali para frente o relacionamento sempre foi intenso. Vô Zira com um sorriso de canto de boca estufava o peito fazendo um barulho gutural para disfarçar orgulho que crescia no íntimo ao ver sua noiva falar tudo aquilo. Neste momento ele interrompia com aquele ar de inocente humildade:
   -Não é tudo isto. Eu dava para o gasto.Linda sempre foi a Tência.Olhos negros combinando com a cor do cabelo,pele morena,lábios de uma grossura sedutora,seios....seios fartinhos,coxas na medida e aquele traseiro...
   - Tenha mais respeito Zira. Tem visita na sala.Depois de velho ficou tarado ?
   - Fiquei não. Sempre fui ! E a culpa é deste teu corpaço...
   -Quieto! Já chega. És de pouca vergonha.
   Houve uma sonora e gostosa gargalhada e o som de um beijo na face da dona Hortência que revida com o cotovelo afastando carinhosamente o seu velhinho de perto.
   -Modos... modos menino.
   E assim viviam os dois numa verdadeira casa de boneca onde uma vez por semana se fazia presente a Marli para fazer uma faxina. E ela era motivo de uma briguinha entre os dois.Dona Tência cismava que Zira não desgrudava o olho do traseiro da faxineira e ele negava de mãos juntas "por esta luz Divina que me ilumina".
   Quando a filha mais velha ia visitar os dois havia uma conversa muito particular entre mãe e filha. E o assunto era timidamente repetido pela dona Tência:
   -Acho que teu pai à medida que avança na idade está ficando tarado, maníaco ou esclerosado. Coloca horário para tudo.Principalmente quando chega a noitinha.Café da tarde tem que ser as quatro,janta as sete e deitar tem que ser as 10 horas.Nem um minuto mais,nem um minuto menos.
   - Ah, mamãe! Estas são manias de pessoas idosas. Vocês sempre estabeleceram horários para tudo quando éramos crianças.E papai fixou esta rotina.
   - Menina ele entra em pânico quando não consegue deitar no horário e só falta mandar as visitas embora quando se aproxima do horário de dormir. E,o pior é em relação ao sexo.É quase todos os dias me incomodando e sempre no mesmo horário.Ele não perdeu as forças ainda.
   - Calma mamãe. Ainda bem que papai tem saúde e não está entrevado numa cama ou coisa parecida.
   -Outro dia fomos a uma festinha de aniversário de uma vizinha, lá no final da rua e ele me fez passar por uma situação constrangedora. A festa estava ótima,bastante salgadinhos,docinhos e refrigerantes e quando o relógio marcou nove e meia da noite me deu a impressão que ele tinha sofrido uma possessão demoníaca.Queria ir embora de qualquer jeito.No meio de uma boa prosa com uma conhecida minha tive que deixar a mulher falando sozinha.Teu pai me agarrou pelo braço com aquela mãozona e quase me arrastou pela rua ,pois tinha que chegar em casa as quinze para dez.Tu acredita ?
   -Vou falar com Gilberto. Meu irmão vai falar com papai sobre isto.
   - Não cai na asneira de dizer que eu falei alguma coisa. Diz para Gilberto dar uma volta e sondar a situação.
   Passado alguns dias, lá estava Gilberto assando um churrasco para recepcionar os dois progenitores. Vô Zira não dispensava uma boa cerveja sempre que podia comemorar alguma coisa.Estar na casa do filho comendo um churrasco,sentado numa boa cadeira de praia,vendo os netos correndo pelo pátio merecia uma comemoração.
   -Pai, como estão as coisas?
   -Não podiam estar melhores. Tudo em paz,aposentadoria na medida certa,tua mãe com saúde ,eu e meu velho guerreiro firme e forte.....o que mais que eu quero.
   -Vais ficar aqui para dormir e aproveitar o domingo conosco.    Seu Zira remexeu o corpo na cadeira, ficou hirto e quase em estado de choque falou com voz alta e firme:
   -Não! Não! Não trouxe meus remédios e não posso passar sem eles. Nada disso.Oito horas me leva para casa,pois antes das quinze para dez tenho que tomar meus remédios e deitar com tua mãe as dez.
   -Hei, mas porque este estresse?Qual o motivo desta angustia?E porque este horário tão rígido?
   -Rapaz, não contraria teu pai. Tenho oitenta e dois anos e não é tu que vai me dar rumo agora.Vou para casa.Eu e tua mãe tomamos nossos remédios e dez horas....cama !
   -Não entendi a necessidade dos quinze para dez e deitar às dez horas.
   -Putz!É que eu separo os remédios da tua mãe e os meus. No meio dos nossos remédios eu coloco a azulzinha.Rapaz,o efeito começa em quinze minutos e não sou bobo de perder o efeito que provoca em mim e na tua mãe.
   Ouve-se uma gostosa gargalhada que é interrompida rapidamente pelas mudanças faciais do Vô Zira. Com uma carranca de botar medo até em fantasma olha para o filho e dispara:
   - Se tu me contar para tua mãe ou para mais alguém... eu te capo e nem azulzinha vai adiantar.Assunto encerrado e me passa uma lasca desta picanha mal passada.
   Sem acreditar no que ouviu Gilberto só consegue dizer:
     -Sim senhor.


Renato Hirtz
Março/2011


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